4/04/2010

Visita Pascal

Quando crescemos, deixamos de conseguir entender os terrores da nossa infância. No meu caso, havia três coisas que me causavam pesadelos e ensombravam a minha existência, aí até aos sete ou oito anos de idade: Os mascarados de Ílhavo no Carnaval, os cais de embarque em madeira com pequenos intervalos por onde se conseguia ver a água lá em baixo... e a visita pascal. Não me perguntem porquê. Eu também não sei. Só sei que no momento em que o prior baixava aquela cruz dourada sobre mim para que eu a beijasse, todos os órgãos do meu corpo gelavam. Durante anos consecutivos, lembro-me de inventar desculpas esfarrapadas, de me esconder debaixo da cama e até de me trancar à chave dentro do quarto para evitar tamanho sacrifício. Sempre em vão. E sempre com a agravante de ser castigada no fim pela maçada que a minha birra tinha causado a todos.
Na última de que tenho memória decidi pentear-me. Era a minha mãe do lado de fora a tentar abrir a porta e eu do lado de dentro a dizer que ainda não tinha acabado de me pentear. E fi-lo de facto. Penteei-me vigorosamente, eu, que sempre choramingava quando me tentavam desembaraçar os cabelos, como se fosse uma penitência que ainda assim eu preferia àquela outra. O meu plano era sair do quarto meia hora depois, com o cabelo impecavelmente escovado e de vestido novo, pronta para receber a visita do padre, e quando alguém me dissesse que ele já tinha ido embora eu, com um ar consternado dizer: - "Oh que pena!".
Não resultou.

5 comentários:

Anónimo disse...

Quando eras pequena não gostavas de receber o padre? Pois, já adivinhavas, não era?

Alírio Camposana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alírio Camposana disse...

Essa aversão inexplicável à cruz só poderia significar que estavas possuída por algum espírito impuro, aliás, comprovado por essa sensação de "gelo" que é um sintoma bem conhecido.

Talvez um bom defumadouro ou até um exorcismo tivessem ajudado!

Cumprimentos e boa Páscoa.

avc

saltapocinhas disse...

eu, pelo contrário, adorava a visita pascal.
é que ter de enfeitar tudo para receber o padre, implicava horas e horas de rambóia com os meus primos a apanhar flores. chegávamos a escrever coisas com florinhas pequeninas e todas iguais.
agora que falo nisto acho que nós fomos os pioneiros dos tapetes de flores!

Didas disse...

Quem sabe Fermelanidades? Era premonição.

Credo AVC, andas a ver demasiados filmes de terror!

Saltapocinhas, cada um é pioneiro no que pode. Tu foste nos tapetes de flores e eu fui nos filmes de terror... pelos vistos.