5/21/2004

A MARIAZINHA



Isto deve estar-me no sangue. A verdade é que quando entrei para a catequese aos seis anos de idade, mesmo não tendo qualquer noção de ideologia política ou filosófica anti-clerical, entrei contrariada.
Calhou-me a Mariazinha.
A Mariazinha era a catequista mais escandalosa da paróquia. Numa pequena aldeia, em plena vigência da regra "Deus Pátria Família", a Mariazinha maquilhava-se com exagero de preto nos olhos e vermelho nos lábios, tinha uma cabeleira negra e rebelde que usava solta pelo meio das costas e aderira de alma e coração à inacreditável estrangeirice da mini-saia. Usava botas pretas de cano e salto altos e cruzava as pernas quando se sentava à nossa frente para nos ensinar, com voz doce, que Deus era o nosso pai do céu e outras baboseiras das quais obviamente não me lembro.
As mulheres da aldeia comentavam à boca pequena como era possível que uma rapariga daquelas estivesse a dar catequese às crianças. Mas só à boca pequena porque o padre, que era quem tinha o poder de decidir quem era ou não digno de crédito no lugar, não admitia qualquer reparo sobre a sua catequista preferida, o que era o suficiente para que todos se calassem, mesmo a respeito das horas suspeitas a que a Mariazinha era vista a sair de casa do Sr. Prior.
Para nós, miúdos imberbes ainda em fase latente, a Mariazinha era apenas linda "como uma Nossa Senhora".
E foi com esse sentimento e também com a certeza de ir proporcionar à minha mãe a alegria de finalmente me ter convertido aos encantos da religião católica que um dia cheguei a casa e declarei radiante:
-Quando for grande vou ser como a minha catequista!
A minha mãe estava a lavar a loiça e, sem sequer desviar os olhos do trabalho, respondeu secamente:
-Está calada, que tu não sabes o que dizes.
Tive que andar seguramente mais meia-dúzia de anos cheia de dúvidas e desiluções até compreender o que se tinha passado.
Claro que nunca cheguei a ser como a Mariazinha. Era só o que me faltava, dar em catequista!...

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