O CHEGADOR
Hoje cheguei ao emprego com o síndrome “Filipe”, ou seja, o Filipe da BD da Mafalda. Quem conhece percebe logo, para quem não conhece é qualquer coisa como isto, vou pelo caminho a imaginar que aconteceu algo espectacular lá na choldra, tipo um raio que destruiu o edifício todo durante a noite, uma revolução popular que exigiu a deposição do presidente, uma peste desconhecida que obrigou toda a gente a ficar de quarentena e já não me deixam entrar. Afinal não tinha acontecido absolutamente nada. Cheguei, disse Bom Dia, responderam-me (ou não, já nem sei), sentei-me no meu canto e fiquei a pensar “o que faço agora com mais uma semana chatíssima à minha frente?”. A minha imaginação demasiado fértil e quiçá demasiado infantil trai-me constantemente. Vivo numa espécie de limbo entre a terra do nunca e um gabinete numa repartição pública.
Lembrei-me então de uma história que aconteceu no tempo em que era funcionária de balcão, ganhava menos de metade do que ganho agora, mas os dias eram tão mais divertidos!...
Era um homem de aspecto rural. Chegou ao pé do guichet e tirou o chapéu, nunca percebi bem se numa atitude de respeito se de desprezo, se uma mistura das duas. Perguntei-lhe ao que vinha, queria que lhe fossem “botar” um “númaro” na porta de casa, que o carteiro era rapaz novo e nem era da terra, onde é que já se viu, e estava-se sempre a enganar, entregava as cartas do Ti Jaquim na casa do Ti Manel e vice-versa.
Era preciso preencher um formulário. “Quer que preencha?”, era a pergunta que me habituei a fazer e que substituía na perfeição o humilhante “Sabe escrever?”. Sim. Queria que eu preenchesse.
Como habitualmente eu ia fazendo perguntas e passando para o papel as respostas que me eram dadas. Quando chegou a parte da profissão, ele respondeu “Chegador” e eu hesitei. “Desculpe... Não percebi...”
- Chegador – repetiu ele pausadamente para que eu entendesse.
- Chegador??? – perguntei – De chegar?
- Então menina? Chegador de chegar sim senhores! – e com a maior naturalidade do mundo – De chegar o boi às vacas! Como quer a menina que nasçam as bezerras?
No olhar e na voz daquele homem do campo não havia qualquer sombra de malícia, apenas dentro de mim, pobre rapariga urbana que comia bifes e bebia meias de leite sem saber que alguém tinha que chegar o boi às vacas...
Senti-me corar ligeiramente de vergonha, especialmente quando, ao afastar-se, o ouvi ainda murmurar abanando a cabeça:
- E sabem eles ler e escrever!...
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