A professora ditava pausadamente e nós reproduzíamos as suas palavras sem lhes dar sentido: -“...uma menina muito tímida e modesta...”. A preocupação era não sair da linha nem errar. “Tímida” leva acento? Os erros estavam hierarquizados e nós calculávamos mentalmente o risco. Pontuação, uma reguada. Acentuação, duas reguadas. Ortografia, três reguadas. Caligrafia, à consideração, dependendo da gravidade da falta. Erros muito graves como verbo “haver” sem “h”, que Deus nos valesse.
A Olga era “burrinha”. Dava sempre muitos erros e não havia maneira de aprender a fazer contas. A professora atirava-lhe a cabeça contra o quadro com muita força e ela, porque já sabia que isso ia acontecer, urinava-se sempre antes de chegar ao estrado para receber os trabalhos corrigidos. Nós não tínhamos pena e ríamos à socapa. Ficávamos muito atentas à cena e não perdíamos pitada. Cá fora no recreio chamávamos-lhe burra e porca e ela chorava. Era a mais fraca. Era o destino dela, não havia nada a fazer. E esta era uma das nossas brincadeiras. Quando ficávamos fartas jogávamos à apanhada, à macaca, ao lencinho e outras coisas básicas das quais apesar de tudo eu não recordo as regras.
A Paula era rica. Mas não queria que ninguém soubesse porque ser rico era sinal de desrespeito a Deus, como muito insistia o nosso Livro de Leitura e a catequista aos domingos. Ser pobre era bom, mas também ninguém queria ser pobre porque toda a gente preferia almoçar e jantar todos os dias. A solução era ser “remediado”. E remediadas eram as meninas filhas de caixeiros-viajantes, de carpinteiros (essa profissão sagrada), de costureiras, de merceeiros e eu, que era filha de militar. Ser filha de militar também era bom porque a professora dava-me sempre como exemplo na aula de história, - “O pai da “x” anda a defender a pátria das pessoas más que querem roubar os nossos territórios ultramarinos!” – eu ficava muito orgulhosa e quando ela não estava a ver olhava as outras com o desprezo de uma língua bem esticada – “Suas saloias!”. Mas o pai da Paula era sócio duma fábrica e ganhava muito dinheiro. Isso ninguém lhe perdoava, todo o povo tinha que ser, no máximo, remediado. Ela chorava e defendia-se – “Eu não sou rica! É mentira!” – e nós fazíamos uma roda diabólica à volta dela – “És! És! És! Não mintas senão levas! Parva!” – e ela chorava mais.
A mãe da Celeste tinha um café. A Celeste era loira, sardenta, tinha uns olhos azuis muito claros e ia sempre de anjo nas procissões. Roubou um maço de tabaco no café da mãe e chamou-nos. Sem ninguém saber, escondemo-nos no meio dum campo de milho verde e alto e fumámos. Tossimos muito. A Celeste contou-nos que costumava espreitar o primo, que era mais velho, quando ele se lavava e se vestia e despia. Nós queríamos saber pormenores daquela coisa de que já sabíamos a existência mas jamais havíamos visto. A Celeste contou, exagerou e nós abrimos a boca e os olhos de espanto: – “Que horror!!!”. Obrigámo-la a jurar que era mesmo como ela dizia e do tamanho que dizia. Ela jurou.
Depois, tivemos a certeza de que iríamos arder nas chamas impiedosas do inferno e arrependemo-nos muito perante a terrível visão do nosso castigo certo e merecido. Não dormimos de noite. Atormentámo-nos. Fomos à igreja e confessámos. Não o nosso prazer mórbido de torturar a Paula e de ver torturar a Olga porque isso não fazia mal. Confessámos que demos umas passas desajeitadas nuns cigarros no meio do milho e falámos de tamanhos e formatos de pilas imaginárias. O Sr. Prior deu-nos pesadas penitências e ralhou muito connosco, como se fosse ele próprio o Deus ofendido.
Fomos para casa e continuámos a torturar as mais fracas e a ser as boas meninas de sempre. Só voltámos a fumar no ciclo.
3 comentários:
Na minha turma era a Júlia... Mas não me lembro de ser tão mazinha. Não a torturavamos no recreio, até porque ela sabia muitas brincadeiras.
Mas os pecados eram mesmo assim: a nossa noção de pecado era muito estranha...
Era?
E ainda não é??
Esqueci-me de dizer o essencial: excelente texto!!
Obrigada! :)))
Enviar um comentário