2/08/2007

UMA HISTÓRIA MODERNA IV (na primeira pessoa)

Fui mãe aos 16 anos. Os que têm a pachorra de ler isto há mais tempo já o sabem porque já mencionei o facto.
No tempo em que eu fui mãe aos 16 anos, apesar da revolução ir de vento em popa, quem entrasse numa farmácia com a nossa idade a aviar-se de qualquer tipo de contraceptivo, ficava conhecido na cidade toda e tinha que passar a enfiar um saco na cabeça.
Será desnecessário explicar aos caríssimos clientes que não foi fácil. Quem a conhecer agora não acredita mas nessa altura, eu tinha uma mãe que dizia que o maior desgosto que podia ter na vida era uma filha dar um beijo na boca ao namorado antes da noite do casamento, por isso digamos que a frente de batalha se estendia por mais quilómetros do que em condições normais. Neste capítulo, ficamos por aqui.
E é claro que praticamente tudo na minha pacata vida foi afectado: os estudos adiados, a licenciatura só veio aos 34 anos, tive que sair da minha casa para ir viver num sítio completamente estranho onde as pessoas não comiam de faca e garfo nem tomavam banho todos os dias, onde não havia água quente canalizada, onde a toda a hora tentavam recuperar-me para a vida honesta (porque naquelo tempo a honestidade de uma mulher só se media entre as pernas), vi a minha barriga a crescer desmesuradamente numa idade em que o máximo que se faz é experimentar o bikini novo e ver se aquilo fica bem ou não e tive que sair à rua assim, com as pessoas a criticar-me, não por estar grávida mas por não disfarçar com roupa justa.
Fui remetida em correio expresso e com selo na testa para um casamento que inevitavelmente acabou um dia mais tarde. Eu fui, auto-anestesiada, e juro que hoje, mesmo que faça um esforço grande, não tenho memória dos convidados, nem do bolo, nem do vestido, nem dos convites, nem de nada. Parece que nem estive lá. Foi assim. Podia ter fumado qualquer coisa ou tomado umas drogas. Como devido ao meu estado não podia, fiz uma viagem extra-corporal e resultou na mesma.
Depois, quando chegou a hora, tive 16 horas seguidas de trabalho de parto com umas parteiras/enfermeiras gordas à minha volta a lembrarem-me em sessão contínua que, se me tivesse portado bem, não estaria a passar por aquilo.
Quando a minha filha finalmente nasceu eu olhei para ela e, fónix, era linda! A sério, podem acreditar! Fogo, mesmo linda! Não tinha a cara vermelha nem a cabeça deformada nem o cabelo agarrado à cabeça... Bolas, parecia um caraças dum anjo! Nunca tinha visto um bebé recém-nascido tão bonito como ela! E claro que não foi por isso, teria acontecido o mesmo de qualquer maneira. Mas caramba, eu aproveitei para me gabar porque acho que mereço! E o que aconteceu foi que, nesse momento, logo, logo, logo nesse momento, eu reconciliei-me ali mesmo com a vida e tive a certeza que tinha valido a pena que era, decididamente, contra o aborto.
Ao longo dos anos vim a ter mais dois filhos, três ao todo. Nenhum voltou a nascer tão bonito como se viesse directamente dos deuses, isso só acontece de vez em quando, mas também não teve mal nenhum.
Continuo a ser contra o aborto até hoje. Por isso, no próximo domingo, decidi que vou votar SIM. Porque o NÃO é ser a favor do aborto selvagem e clandestino. Porque esta merda deste mundo não é perfeito e não vale a pena andarmos aqui todos de bandeirinha na mão a fingir que é.

15 comentários:

saltapocinhas disse...

Bela história...
Eu fui mãe aos 17, o aborto foi coisa que nem me passou pela cabeça...
Os meus pais passado o choque inicial viram a coisa pelo lado prático e aceitaram bem.
Tive mais sorte que tu no pai que escolhi para o meu filho: casámos (e eu lembro-me de tudinho, mesmo dos pormenores), mais tarde fizemos uma filha e continuamos juntos e felizes.
Pelo teu restemunho e pelo meu, eu também voto SIM.

Anónimo disse...

UMA HISTÓRIA MODERNA V

Já eu cá, estive para ser abortada mas devido ao atraso no zelo da minha mãe, entretanto já separada do meu pai, não foi encontrado nenhum sítio onde a minha mãe pudesse fazer o meu aborto. Já não encontrou ninguém que o quisesse fazer.

Ainda bem, digo eu agora, que já tenho 32 anos e duas filhas.
É claro que não posso votar sim. Voto NÃO.

Grilinha disse...

Este teu testemunho faz-me lembrar o que vivi com uma amiga há 25 anos atrás.
Por isso mesmo eu tenho escrito por aí em diversos comentários que voto SIM á despenalização e a uma maior educação sexual quer aos jovens quer aos casais adultos que não têm possibilidade de adquirir contraceptivos.
Um beijinho e parabéns pela forma como encaras a vida.

Didas disse...

Saltapocinhas, ainda bem que conseguiste ser feliz. Nessas circunstâncias, dizem as estatísticas que não costuma correr bem. É bom.

Susana, lamento por ti. Compreendo que seja muito difícil viver com esse sentimento. Mas insisto que o voto no Não não vai proibir o aborto de maneira nenhuma. Vai continuar a ser a vergonha que é agora.

Naquele tempo, Grilinha, a dificuldade em adquirir contraceptivos advinha tão só da trenguice das pessoas. Felizmente já não é assim.

Obrigada pelos vossos comentários.

Daniela disse...

Apesar de não ter passado por nada semelhante, voto Sim, pelos mesmos motivos!
Gostei da frontalidade e simplicidade com que contaste a tua história!
Beijinhos

Anónimo disse...

Já li muitos posts e comentários sobre o assunto e confesso que já estou um pouco desgastada, devido a falsas questões, falsos moralismos e gente surda.

Mas hoje encontrei dois posts que gostei muito, que acho que são enriquecedores do debate. Este foi um deles.

SIM, concordo com a despenalização até às 10 semanas, por opção da mulher, num estabelecimento legalizado.

(atenção: a minha crítica no início do post não é para os defensores do "não", mas para a forma como algumas pessoas o defendem).

Anónimo disse...

Mas Didas, se quando a minha mãe engravidou o aborto fosse livre, eu tinha sido abortada! Difícil se não impossível era viver com isso, bolas!
Quantas pessoas como eu vão ser abortadas porque agora já se pode?? Não me dizes?

Anónimo disse...

Susana:
Disseste "Já não encontrou ninguém que o quisesse fazer." Isso quer dizer que já estava com um agestação adiantada?

Se a lei que está a ser referendada já tivesse sido abortada na altura, a tua mãe também não poderia ter abortado. esta lei não torna o aborto "livre", o que faz é regulamentar. Não se vai poder abortar quando se quiser (só até às 10 semanas) nem em qualquer sítio.

“Só a partir das 24 semanas o feto ganha autonomia para sobreviver. Até lá, tem os órgãos em esboço, mas não são funcionais. O pulmão só funciona a partir das 28 semanas. A tiróide só segrega hormonas aos quatro meses. O cérebro só amadurece a partir dos cinco meses, aí os neurónios conseguem permitir ao feto o movimento voluntário. Se perguntar às mulheres quando sentem o primeiro pontapé, todas são unânimes em dizer seis meses. O coração funciona desde as três semanas, mas as válvulas só se formam aos cinco meses e só aí os vasos sanguíneos chegam a toda a parte. “ (Mário Sousa, médico, numa entrevista ao JN. Podem ver em http://jn.sapo.pt/2007/01/25/nacional/a_deve_paga_uma_questao_sacrificio.html)

Por isto é que faz todo o sentido a pergunta do referendo, sobre despenalizar até um certo tempo de gestação. Até às 10 semanas é uma vida em esboço. Ainda não é um bébé.

Susana, eu compreendo que te magoe pensar que tu poderias não ter nascido, porque hoje és uma pessoa, nasceste.

Uma coisa é interromper o desenvolvimento de um embrião, outra bem diferente é interromper uma gestação de um bébé já formado.

Anónimo disse...

Desculpem, eu queria dizer "Se a lei que está a ser referendada já tivesse sido aprovada" e não "abortada", como é óbvio!!!

Anónimo disse...

Mas zeni, em qualquer dos dos casos quem não nascia era EU, não era?

Didas disse...

Para a Susana a questão é emocional e isso impede qualquer análise racional da parte dela. Mas até se compreende.

saltapocinhas disse...

Olá Didas, estás a ver porque não acredito em estatísticas??
Quanto à Susana, só tenho a dizer-lhe que a mãe cometeu um erro enorme ao dizer-lhe que ela ia ser abortada...
Se ela na altura ponderou essa hipótese mas não a concretizou, jamais o deveria ter contado à própria filha!

Elipse disse...

Por acaso a mim também a minha mãe me disse que eu era para ser abortada porque ela tinha 18 anos e era solteira em 1958. Não deve ter sido coisa fácil!!!
E então?
O mundo iria parar se eu não tivesse nascido? E mudou alguma coisa por eu ter nascido?

Eu sou apenas um elementozinho aqui nesta engrenagem, apenas mesmo!!!
Aliás só posso dizê-lo porque sou um ser vivo; se não fosse,alguma vez se teria posto a questão?
Ai o Einsteien fazia cá falta para nos voltar a falar da relatividade!Ele ou outro, porque se ele não tivesse naascido outro qualquer chegaria lá, como chegaram depois! A História não cona tudo, só conta a parte dos vencedores!

Elipse disse...

porra para as teclas e para a minha pressa em teclar!!!
já viram isto?
A história não CONTA tudo, pois não, mas não era preciso ter ajavardado a frase, lololol...

Unknown disse...

Olha eu no no teu Blog voto SIM, eum SIM muito grande..., não conhecia e passei por aqui hoje pela primeira vez ( primeira de muitas com certeza )

E agora vou votar, xau...

Um Beijo do Catano !!!

P.S. Vou linkar o teu Blog nos meus links, ok ?