3/07/2007

Pelo lado feminino da família, sou descendente de gente do mar. Já nasci longe das ondas, dos barcos, dos arrais, da venda do peixe, na fase urbana. A pobreza e o sacrifício há muito exorcizados.
Mas sempre soube que tinha vindo do atlântico porque isso estava gravado nos corpos das mulheres e reacendia em intervalos regulares.
Muitas vezes, mesmo em tenra idade, assisti a aparições de espíritos que vinham para mostrar que as mortes do mar não queriam ficar esquecidas.
Eram tratados familiarmente e com nomes. Hoje veio o tio-avô X, o avô do avô de Y.
Já só conheci uma dessas mulheres-veículos da memória, talvez a última. Era ela que servia de ponte entre nós e os antepassados ancestrais. Que alterava a voz e as feições e as atitudes para que eles mostrassem as vidas e as mortes no mar que se recusavam a ficar anónimas.
Habituei-me desde sempre a conviver com isso, tranquilamente. Mais tarde, discretamente e com o distanciamento adequado. Porque já sou da fase urbana.

Hoje é o dia da Mulher. Mas não tem nada a ver.

2 comentários:

Mauro Pereira da Silva disse...

O texto é bom, mas honestamente, nunca fui a favor de dia disso, dia daquilo. Dia da mulher, da criança, natal, ano novo, é horrivel. Áté quando precisaremos de "dias" para nos lembrar das coisas? Bom blog, parabéns.

Alírio Camposana disse...

Às vezes são precisas pontes que permitam mostrar que as travessias têm sempre dois sentidos. Ambos os lados são mais do que as palavras que os definem e isto tudo se resume a atravessar a ponte, para lá e para cá, para lá e para cá, tantas vezes, quantas as que forem necessárias até, quem sabe,não ser mais preciso. Talvez um dia possamos estar nos dois lados ao mesmo tempo, felizes, na companhia daqueles que mais gostamos.

Cumprimentos e parabéns pelo texto.