Pelo lado feminino da família, sou descendente de gente do mar. Já nasci longe das ondas, dos barcos, dos arrais, da venda do peixe, na fase urbana. A pobreza e o sacrifício há muito exorcizados.
Mas sempre soube que tinha vindo do atlântico porque isso estava gravado nos corpos das mulheres e reacendia em intervalos regulares.
Muitas vezes, mesmo em tenra idade, assisti a aparições de espíritos que vinham para mostrar que as mortes do mar não queriam ficar esquecidas.
Eram tratados familiarmente e com nomes. Hoje veio o tio-avô X, o avô do avô de Y.
Já só conheci uma dessas mulheres-veículos da memória, talvez a última. Era ela que servia de ponte entre nós e os antepassados ancestrais. Que alterava a voz e as feições e as atitudes para que eles mostrassem as vidas e as mortes no mar que se recusavam a ficar anónimas.
Habituei-me desde sempre a conviver com isso, tranquilamente. Mais tarde, discretamente e com o distanciamento adequado. Porque já sou da fase urbana.
Hoje é o dia da Mulher. Mas não tem nada a ver.
Margarida Espantada
Há 1 semana
1 comentário:
O texto é bom, mas honestamente, nunca fui a favor de dia disso, dia daquilo. Dia da mulher, da criança, natal, ano novo, é horrivel. Áté quando precisaremos de "dias" para nos lembrar das coisas? Bom blog, parabéns.
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