5/03/2007

O CONFORTO DO ANONIMATO


Vivo numa cidade pequenina, no entanto consideravelmente maior do que era há cerca de quarenta anos quando a minha família se mudou para cá. Pode dizer-se que atingiu a dimensão em que já não é humanamente possível saber quem é quem duma forma pormenorizada. O que para mim, pessoa de temperamento pouco dado a intimidades indiscriminadas, é bom. Agrada-me poder entrar no café aqui mesmo ao lado de casa e saber que, com excepção dos “cuscos” profissionais, o máximo que alguém vai saber é que devo morar por aqui porque apareço todos os dias. Agrada-me frequentar locais de anonimato garantido daqueles que só existem nas cidades: o hiper-mercado, o centro comercial, os cinemas… Agrada-me só conhecer os meus vizinhos quando os encontro na escada e, fora do nosso habitat, apenas tenho a vaga sensação de já ter visto aquela pessoa algures. É assim que eu sou. Não fria, mas reservada, diria. E selectiva. Mas foi apenas há algum tempo que eu tive a verdadeira consciência de que a cidade cresceu a um ritmo talvez demasiado rápido para que algumas pessoas, habituadas a viver numa quase aldeia com uma avenida e uma estação de comboios ao fundo, o conseguissem acompanhar.
Uma senhora de uns sessenta anos que eu atendi no meu local de trabalho mostrava-se visivelmente incomodada com o facto de não saber quem eu era. Eu, embora com a delicadeza a que a consciência profissional me obriga, fingia ignorar esse facto. Até que ela (que devia estar desde o início à procura das palavras certas na cabeça), desabafou:
- Ai, Aveiro agora tem tanta gente! Dantes é que era bom, não havia ninguém que eu não conhecesse!
- É natural D. ****** - disse eu tentando esboçar um sorriso que saiu amarelo – e continuei a tratar do assunto dela.
- Mas por exemplo a menina, é de cá?
- Sou. Há muitos anos. – e o estúpido do sorriso insistia em já não sair agora, nem amarelo.
- Está a ver o que eu digo? Eu não a conheço, não sei quem é! … - e depois a pergunta fatal – É de que famílias?
Nessa altura contei até dez enquanto mentalmente, apenas mentalmente, saltava para cima da mulher e lhe desfazia completamente o irritante capacete que tinha acabado de fazer na sua cabeleireira conhecida de má qualidade. Logo a seguir, imperturbável, respondi-lhe:
- Não creio que esse seja um elemento importante neste contexto.

5 comentários:

Anónimo disse...

aqui no brasil isso é muito comum em cidade pequena. é um querendo saber da vida do outro. aqui onde eu moro, por exemplo, é assim, todo mundo saba de vida de todo mundo. acho que no brasil, de uma forma geral, as pessoas tem essa mentalidade atrazada. daí, quando vão a uma país de 1 mundo, dizem que as pessoas são frias.

saltapocinhas disse...

Também sou bastante reservada...
Certa vez encontrei num hiper uma pessoa conhecida (mas pouco, só a tinha visto 1 vez)e fiquei a pensar três quinze dias se a havia de cumprimentar ou se havia de fingir que não a vi.
Optei por a cumprimentar mas agora percebo que se calhar fiz mal :(
Mas o que eu vinha aqui perguntar era: a senhora percebeu a tua resposta??

Didas disse...

Então deve ser por isso que há aquipessoal que quando vai ao Brasil diz que as pessoas lá são mais "quentes", lol!

Didas disse...

Não Saltapocinhas, não percebeu. É que na verdade eu não contei a história até ao fim. Até à parte em que ela acabou por borrar mesmo tudo, partindo do princípio que eu não queria dizer por ser de famílias menores. Aí começou a enrolar uma conversa de merda sobre como é uma porreiraça que fala com gente de todas as classes sociais e às vezes até são melhores os humildes do que os outros. E eu com vontade de lhe curar os problemas sexuais, ou seja, de a mandar para o c*ralho. Foi um desastre! :)))

Didas disse...

Ah, e esqueci-me duma coisa: Há pessoas que eu, de facto conheço. E costumo cumprimentar no super-mercado. Esse é um outro departamento. ;)