A B. tinha 51 anos quando se começaram a manifestar algumas irregularidades no seu ciclo biológico. A princípio encarou-as com algum alívio, como um sinal de que o seu corpo tinha finalmente acedido a ceder ao cansaço, que iria em breve encerrar o seu período de vida fértil e poderia sentir-se leve pela primeira vez. Tinha casado aos dezoito anos, apaixonada pela ideia de deixar a miséria e a servidão em que vivia. Nos cinco anos seguintes tivera cinco filhos e o marido outros tantos, fora de casa. Depois, com o corpo já gasto, ele deixou de a procurar com a mesma frequência, só quando o dia lhe corria mal ou nos intervalos das amantes. Com grande sorte, a B. não voltou a engravidar. Como não tinha profissão e a sua instrução não ia além de saber juntar algumas letras, sujeitou-se conformada a longos anos se maus tratos e insultos para poder sobreviver e que sobrevivessem também os filhos. Quando o marido finalmente envelheceu e se tornou dócil pela necessidade de cuidados que só em casa, apesar de tudo, conseguia ter, a B. pôde desfrutar de alguns momentos em que ensaiou uma felicidade desconhecida, porque os filhos estavam "arrumados" e os netos lhe enchiam a alma. E até com o carrasco de outrora conseguia agora, embora desconfiada, partilhar alguns momentos de ternura magoada.
Só que os deuses recusaram dar tréguas a B.. Após um par de semanas de enjoos que ela tão bem conhecia de outros tempos, um médico confirmou-lhe que afinal, a menopausa esperada era uma gravidez temida.
Religiosa, temente a Deus e a santos, sentiu-se perdida. Abortar era pecado. Mas, naquele tempo, ter um filho com aquela idade era quase uma certeza de tragédias várias. Envergonhada pensava nos filhos, nos netos e nela própria. Pensava no que poderia acontecer àquele ser e experimentou, a medo e lutando contra vários demónios pequeninos que lhe infernizavam os dias e as noites desde a notícia da gravidez, perguntar ao doutor se, na idade dela, não seria melhor... enfim... tirar... enquanto era tempo.
O médico, do cimo do seu palmo de superioridade lançou-lhe para cima as chamas dos infernos sob a forma de ameaça de processo judicial e de crime! A B. voltou para casa e chorou todos os dias para expiar a pena do pecado que sabia inevitável. A B. estava condenada a pecar. Sabia isso mas não sabia como nem quando porque, confusa, não contou às filhas, não contou ao marido que jamais compreenderia, não contou a ninguém. Quando finalmente arranjou coragem para recorrer a uma "parteira" que toda a gente conhecia mas ninguém admitia que conhecia, esmagada pelo peso do ignomínia, estava já grávida de cinco meses.
Por quarenta contos que saíram das suas poupanças de anos e porque "com aquele tempo todo era preciso fazer a coisa bem feita, ainda bem, Dona B., que veio cá, que eu sei fazer as coisas, não sou como qualquer uma", a habilidosa retirou das suas entranhas, sem qualquer anestesia, um bebé já perfeitamente formado que ainda estrebuchou alguns segundos perante os seus olhos antes de desistir da vida.
A B. voltou para casa e estava também morta. Alguns dias depois as filhas deram com ela a um canto, ainda ensanguentada, sem banho, sem qualquer cuidado de higiene e com os olhos inchados de chorar horas a fio. A B. tinha enlouquecido e, ainda que com o tempo tivesse recuperado alguma aparente normalidade, nunca mais conseguiu rir com vontade até ao fim da sua longa vida. Nem com a companhia dos netos.
Esta é, de acordo com algumas mentes brilhantes, mais uma história moderna.
Ilustração: Eugène Delacroix, A Mulher Louca
Só que os deuses recusaram dar tréguas a B.. Após um par de semanas de enjoos que ela tão bem conhecia de outros tempos, um médico confirmou-lhe que afinal, a menopausa esperada era uma gravidez temida.
Religiosa, temente a Deus e a santos, sentiu-se perdida. Abortar era pecado. Mas, naquele tempo, ter um filho com aquela idade era quase uma certeza de tragédias várias. Envergonhada pensava nos filhos, nos netos e nela própria. Pensava no que poderia acontecer àquele ser e experimentou, a medo e lutando contra vários demónios pequeninos que lhe infernizavam os dias e as noites desde a notícia da gravidez, perguntar ao doutor se, na idade dela, não seria melhor... enfim... tirar... enquanto era tempo.
O médico, do cimo do seu palmo de superioridade lançou-lhe para cima as chamas dos infernos sob a forma de ameaça de processo judicial e de crime! A B. voltou para casa e chorou todos os dias para expiar a pena do pecado que sabia inevitável. A B. estava condenada a pecar. Sabia isso mas não sabia como nem quando porque, confusa, não contou às filhas, não contou ao marido que jamais compreenderia, não contou a ninguém. Quando finalmente arranjou coragem para recorrer a uma "parteira" que toda a gente conhecia mas ninguém admitia que conhecia, esmagada pelo peso do ignomínia, estava já grávida de cinco meses.
Por quarenta contos que saíram das suas poupanças de anos e porque "com aquele tempo todo era preciso fazer a coisa bem feita, ainda bem, Dona B., que veio cá, que eu sei fazer as coisas, não sou como qualquer uma", a habilidosa retirou das suas entranhas, sem qualquer anestesia, um bebé já perfeitamente formado que ainda estrebuchou alguns segundos perante os seus olhos antes de desistir da vida.
A B. voltou para casa e estava também morta. Alguns dias depois as filhas deram com ela a um canto, ainda ensanguentada, sem banho, sem qualquer cuidado de higiene e com os olhos inchados de chorar horas a fio. A B. tinha enlouquecido e, ainda que com o tempo tivesse recuperado alguma aparente normalidade, nunca mais conseguiu rir com vontade até ao fim da sua longa vida. Nem com a companhia dos netos.
Esta é, de acordo com algumas mentes brilhantes, mais uma história moderna.
Ilustração: Eugène Delacroix, A Mulher Louca
5 comentários:
Pois, talvez para alguns seja um história moderna ou pós moderna, ams realidade não é mais do que um brilhante forma de nos mostrar o outro lado da coisa.
O lado de quem a vive, de quem tem direito a não querer.
O lado humano, porque afinal de contas ninguém é santo...
www.omundodealcebiades.blog.com
Esta magoa mesmo.
Não é uma questão de ser santo. Nós somos só pessoas.
E a realidade às vezes magoa sim...
Obrigada por lerem
Ah! ah! ah! Esta história é linda!
O bebé é que "desistiu" da vida, não foi a gaja que o matou!
E estrebuchou e tudo! Ah! ah! ah!
Que importa se é um relato de um caso concreto, se é com certeza o relato de muitos casos por contar.
Ao abjecto, pelo anonimato, que remata rindo digo que reforça a minha convicção num SIM pela insensiblidade que tão bem traduz muito "NÃO".
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