O sistema educativo português (que é o único que eu conheço) tem uns tiques giros e intocáveis. Um é que o trabalho e o interesse são mais importantes do que a inteligência. Este serve para passar todos os alunos que são burros que nem socas mas que, em última análise lambem bem os rabos dos professores, e é sobejamente conhecido. Já se começava a insinuar como veneno letal no tempo em que eu por lá andava como aluna. A participação nas aulas! – gritavam histéricas as profes no final do período – A participação! – e eu que, porra, preferia ficar ali pela carteira de trás a dormitar enquanto guardava na memória RAM as patetices necessárias para debitar nos testes com boa nota!
O outro é menos conhecido porque menos visível e tem a ver com a educação física. Dita esse tique que quem não tira o máximo prazer de apanhar frio, chuva e sol enquanto transpira que nem um mártir a atirar uma bola e a apanhá-la de volta ou a correr como se fosse um evadido de Tires, é um anormal e deve ser castigado. Penso que este tique já vem do tempo da mocidade portuguesa, filha paupérrima da juventude hitleriana que por sua vez a tinha ido buscar à primitivíssima Esparta. Réstia de tempos brutais, portanto, que subsistirá, pelas minhas contas, ainda umas quantas gerações. Também eu fui vítima deste dogma. Para mim, as aulas de educação física eram “aquelas três horas semanais que temos que levar como se fosse óleo de fígado de bacalhau, tapa-se o nariz e engole-se”. Odiava o ritual de me despir com a confusão da maralha e só queria poder jogar vólei de casaco comprido e livros debaixo do braço para poder ir embora logo a seguir. Odiava o pavilhão austero que fazia ecoar a gritaria dos professores e o chiar das sapatilhas. Odiava duplamente o azar de estar com o período e era a primeira a ir pedir dispensa à professora nesses dias. Mas haverá coisa melhor do que fazer barras paralelas com um penso higiénico a ameaçar transbordo! - era logo o que se lia no olhar dela. Odiava o fatinho de Lycra preta que usávamos nesse tempo e as bocas dos trolhas quando fazíamos corta-mato fora de portas. Corta-mato! Era o que chamavam a andar às voltas ao liceu até cair, entre o hotel Afonso V e a farmácia do outro lado. Grande mato! Nos jogos de baliza, a minha posição variava entre suplente e guarda-redes, que era o que me calhava nos dias maus em que nem o meu ar ensonado impedia de ser escolhida para uma das equipas. A juntar a tudo isso e para ajudar a sacar sempre o tal “três por favor porque não é má no resto” no final dos períodos, falava alto a minha configuração anatómica, desde cedo a puxar perigosamente mais para o lado Mae West do que Lara Croft. Salvaguardadas as devidas proporções.
Apesar de tudo, escolhiam-me para guarda-redes. Porque eu tinha desenvolvido um método infalível de defender. Num acto de concentração único, eu conseguia, durante todo o jogo, deixar de ver tudo o que não fosse a bola. Nem as colegas, nem as árvores, nem o chão, nem as nuvens, nada. Apenas a bola. Nem os penalties entravam, era certinho! Hoje, quando me lembro disso, acho que essa capacidade deveria ter sido valorizada nas notas. Mas não foi. Apesar de chegar a ter alguma fama como “a que defende penalties”, nunca passei da que não presta para nada a educação física, coitadinha!