Nunca entendi o fado nem consigo entender. Nunca entendi aquela urgência de sofrer nem o prazer perverso de fazer chorar a alma sem motivo aparente. Deve ser defeito meu. Intrínseco ou geográfico. Nasci no local errado para entender o fado., é o meu fado.
Lembro-me da primeira vez que assisti a um espectáculo de fado ao vivo, como me lembro da primeira vez que vi uma tourada. Não contando com os fados que a minha avó cantarolava pela casa que esses não eram fados que me batessem nas entranhas, era a minha avó a cantar simplesmente. De ambos fiquei com a convicção que bastava, embora com um sentimento diferente. O fado era só depressão, a tourada era repulsa.
A primeira vez que ouvi cantar fado sem ser na televisão a preto e branco e só com um canal foi na festa de S. Sebastião, que a comissão de festas montava mesmo nas traseiras do prédio onde morávamos e onde hoje só há mais prédios todos parecidos. Nós tínhamos direito a lugar de camarote da janela de casa. Naquele ano foi contratado um fadista pintoso e sem nome. E lá esteve ele por uma noite, no palco improvisado, magro como um cadáver, de cabelo oleoso e bigode, fato coçado onde o bedum já brilhava com o reflexo das luzes, no meio de dois guitarristas que pareciam chorões no outono, a cantar vezes sem conta a mesma composição musical com letras diferentes: Uma era sobre o soldadinho que foi para a guerra, depois a criadinha desonrada, mais tarde a família assassinada por um criminoso sem coração e por fim a galinha com o ovo encravado na cloaca, tudo a rimar a preceito.
E as luzes da festa de todas as cores, sempre a piscar, numa cena quase patética. Nós ríamos na varanda porque as crianças conseguem rir sempre.
E cá em baixo os bêbedos, alheios, consumiam vinho da pipa.