A leviandade com que a padralhada e as Kikis e Cocós e outros(as) que têm uma vidinha porreira defendem o Não no referendo com argumentos que não lembram ao diabo, habitualmente só me provoca riso.
Mas há alturas em que me provoca um aperto no estômago. Como quando me lembro da M., colega de turma de minha filha mais nova, com 16 anos, que teve um filho no ano passado. A M. vive com sozinha com o pai, “embarcado” de profissão e que pouco liga à filha, ou porque não pode, não quer ou a vida não lhe ensinou a fazer de outra maneira. Sem afecto, sem atenção, em suma “sem”... como reza uma marca de bolachas, a M. arranjou um namorado mais velho (cerca de trinta anos de idade) e adoptou-o como bóia de salvação.
Um dia, a M. teve um atraso no período e comentou com as colegas que talvez estivesse grávida. Estava preocupada. Como em todos os sonhos maus, não acreditou logo no que lhe estava a acontecer. Pensou que talvez fosse mentira, que talvez acordasse e visse que tinha sido só um pesadelo. Mas com o passar dos dias veio o fim da esperança. A M. chegou à escola coberta de hematomas. Tinha provocado quedas de escadas e cadeiras e tinha agredido violentamente o seu próprio ventre em desespero de causa. Contou ao namorado, que de imediato se evaporou até ao dia de hoje. As colegas contaram às professoras, que chamaram o pai para lhe contar. Depois de saber, o pai partiu também para uma viagem. A M. ficou sozinha e assim haveria de permanecer até ao final da gravidez. Como não tinha ninguém em quem confiar nem com situação financeira capaz de a levar a Espanha, e como em Portugal uma das únicas formas de conseguir um aborto nos serviços públicos de saúde é a gravidez ter sido fruto de violação a M. apresentou queixa na polícia. Estava quase de cinco meses. O agente de serviço olhou-a com pena e disse-lhe – “A menina devia ter feito isso há mais tempo, agora é tarde!”.
A M. estava sozinha e grávida. A directora de turma levava-a às consultas e a escola reuniu dinheiro para comprar o enxoval do bebé. Mas a M. estava sozinha. Morava nos subúrbios. E só tinha o passe de autocarro que a acção social escolar pagava. Podia entrar em trabalho de parto a qualquer hora da noite e estava sozinha. Cheguei a dizer à minha filha que lhe desse o meu número, que me podia ligar, que a iria buscar para a levar ao hospital. Penso que as professoras tiveram a mesma ideia porque não foi preciso. Um dia, tive a notícia de que o bebé tinha nascido.
Hoje em dia, a M. falta à escola a maioria das vezes, provavelmente não irá mais além. Diz-se que não gosta do filho. Que se irrita quando ele chora e que o olha com amargura.
Isto que acabei de contar é, segundo algumas mentes brilhantes, moderno.
Margarida Espantada
Há 1 semana