Antes de terem inventado as festas de anos para crianças na McDonalds e nas discotecas e, mesmo que não pareça, muito depois dos dinossauros terem caminhado sobre a terra, a primeira comunhão era a forma mais comum de ritual de passagem. Foi nesse tempo que a Didas viveu a sua infância. Para os meninos e meninas que não tiveram a oportunidade de conhecer esses tempos fantásticos, vou explicar duma forma resumida do que constava então esse grande acontecimento da vida das pessoas.
Primeiro, era obrigatório ir todos os domingos à missa, que era precedida duma sessão de catequese e confissão, o que significava sair da cama por volta das oito da manhã e só voltar a casa por volta da uma hora, já com uma galga brutal. Só depois de feita a primeira comunhão é que as crianças ganhavam o direito a ir para a fila na missa para receberem uma rodelinha de farinha seca que não chegava sequer aos calcanhares duma bolacha de água e sal nem tirava um décimo da galga com que já se estava. Além disso, não se podia pôr manteiga, nem compota, nem nada para melhorar o sabor daquilo. Também não se podia tocar-lhe com os dentes porque tal era considerado pecado, e isso exigia o desenvolvimento de uma apurada técnica oral que, garantem alguns, viria a ser muito útil no futuro. Sobre isso não sei. Sei que cada pessoa acabava por criar a sua técnica pessoal e isso originava longas e interessantes tertúlias à volta do tema.
Era igualmente indispensável ir à confissão, o que, para os menos versados na matéria podemos definir como uma espécie de jogo das palavras em que nós éramos os jogadores e o senhor padre era o árbitro. Era assim: Todos os domingos, sem falha, tínhamos que ir todos à vez para dentro duma casinha de madeira contar o que tínhamos feito de mal durante a semana e que merecia castigo. Este jogo, embora de regras pouco claras, era bastante excitante, pois exigia uma considerável habilidade e contenção no uso das palavras e, ao mesmo tempo, uma enorme dose de imaginação. Mas eu exemplifico. O padre perguntava: - “Quais foram os teus pecados desta semana?” – e havia meninos que se atrapalhavam logo todos e diziam qualquer coisa vaga como – “Desobedeci à minha mãe.” – Está claro que logo a seguir, o árbitro (manhoso e experiente como era) contra-atacava sem qualquer hipótese para o adversário, com perguntas como: - “Ai sim? E quando foi isso? E desobedeceste em quê? O que é que ela te tinha mandado fazer?” – as quais resultavam invariavelmente em desnorte, contradições no testemunho e, para castigo de ter sido apanhado a mentir, uma dose reforçada de avé-marias e padres-nossos. O bom jogador de confissão tinha truques, conhecia esquemas e, sobretudo, treinava em casa. Só um completo ingénuo ignorava que não podia aparecer na sessão da semana a confessar pecados como “Fumei uns cigarros que roubei ao meu pai, espreitei a minha tia a tomar banho ou a minha irmã mais velha a namorar”. Tais coisas resultariam em dose inumana de orações e ameaça de ir parar ao inferno sem apelo nem agravo. Os pecados tinham que ser concretos mas admissíveis, assim do tipo anedotas do António Sala. E cada um tinha que tratar de arranjar os seus. Geralmente, coisas como “esqueci-me de fazer os deveres da escola na quinta-feira (atenção ao concreto!), discuti com o meu irmão por causa dum brinquedo ou arranquei uma flor do jardim da vizinha” safavam o pecador com dois ou três padres-nossos no máximo e a recomendação de tentar ser uma boa criança no futuro.
A Didas só falhou uma vez, mas foi precisamente na véspera da comunhão, ou seja, na sessão de confissão mais importante de todas! O senhor padre, depois de muitas perguntas e tentativas de baralhar a jogadora, sem êxito, lançou a última perversa cartada: -“Reza aí uma Salve-Rainha para eu ouvir!”. Caramba! Nunca tinha sequer ouvido falar nessa personagem da monarquia e, perante a certeza de que, se começasse a inventar logo seria descoberta pois ele devia saber aquilo melhor do que ela sabia os horários dos desenhos animados e da Lassie na televisão, baixou a cabeça e, dolorosamente, admitiu a derrota: - “Não sei rezar essa…”
Foi um festival de achincalho! Ele era “onde é que já se viu uma criança prestes a fazer a primeira-comunhão não saber a salvé-rainha”, ele era “onde é que esta juventude vai parar assim!”, ele era “como é que as crianças irresponsáveis esperam ganhar o céu no fim da vida se nem sequer sabem a salve-rainha!...”
Escusado será dizer que, ultrapassada a difícil fase da primeira comunhão, a Didas conseguiu massacrar tanto, mas tanto, lá em casa, que nunca mais na vida a obrigaram a ir à missa ao domingo. Ainda foi obrigada a muitas outras coisas que iam contra os seus firmes princípios éticos, claro. Mas isso fica para outros episódios.